
Há decisões políticas que parecem simples mudanças legislativas, mas que, no fundo, revelam um reposicionamento profundo sobre qual país queremos construir. A aprovação no Senado dos projetos que isenta do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil e que amplia a licença por luto de dois para até oito dias é uma dessas decisões. Pequenas linhas em textos legais, sim. Mas também um raro sopro de racionalidade e sensibilidade social em tempos de tanta frieza institucional.
Durante décadas, o sistema tributário brasileiro foi um espelho distorcido da nossa desigualdade: cobrava mais de quem tinha menos e poupava, generosamente, quem concentrava renda. Ao ampliar a faixa de isenção para R$ 5 mil, o Congresso dá um passo — tímido, mas significativo — em direção à justiça fiscal. Essa mudança pode representar alívio imediato no orçamento de milhões de famílias que vivem no limite do básico e, ao mesmo tempo, pressionar as camadas mais altas a contribuírem proporcionalmente com a sociedade que as sustenta.
A criação de um programa de regularização de dívidas tributárias para os mais pobres também é mais do que um gesto econômico: é um reconhecimento de que a informalidade e a inadimplência não são sinais de má-fé, mas de um Estado que, muitas vezes, cobra mais do que oferece. Reintegrar essas pessoas ao sistema formal é permitir que voltem a respirar — e isso tem impacto direto no consumo, na dignidade e na cidadania.
No campo trabalhista, a ampliação da licença por luto talvez seja ainda mais simbólica. Em uma lógica produtivista que historicamente tratou o trabalhador como peça descartável, oferecer oito dias para processar a dor da perda é um ato de humanidade. Dois dias, como prevê a legislação atual, são uma crueldade burocrática: não bastam sequer para organizar um velório, quanto mais para começar a lidar com o vazio que a morte deixa.
Reconhecer o luto como parte da vida laboral é reconhecer que o trabalho não está acima da existência — e que empresas e instituições precisam, urgentemente, abandonar a lógica de que produtividade se mede em horas friamente contadas no relógio.
Essas duas mudanças — uma no campo fiscal, outra no campo trabalhista — podem parecer desconexas, mas estão profundamente ligadas por um mesmo fio condutor: a urgência de um Estado mais justo e mais humano. Não basta falar em crescimento econômico se a renda continuar concentrada e se o trabalhador continuar sendo tratado como um número descartável na planilha do lucro.
É claro que ainda há muito a avançar. A reforma tributária precisa ser mais ousada, enfrentando privilégios históricos e desmontando o emaranhado de isenções que blindam o topo da pirâmide. O debate sobre direitos trabalhistas precisa ir além do luto, abordando saúde mental, jornada flexível e qualidade de vida. Mas, mesmo com suas limitações, essas propostas sinalizam um novo caminho: o de colocar a vida — e não apenas a economia — no centro das decisões políticas.
Talvez seja esse o verdadeiro desafio da democracia brasileira no século XXI: deixar de ser um país onde leis existem apenas para manter a ordem econômica e passar a ser um país onde elas são instrumentos de transformação social. A aprovação no Senado é, quem sabe, um primeiro passo nessa direção. Que a Câmara não perca essa oportunidade.https://jornalfactual.com.br/
