
No silêncio que fica depois do tiro, da facada ou do último grito sufocado, há brinquedos espalhados no chão, quartos vazios e uma ausência que nunca será preenchida. São os filhos do feminicídio — crianças e adolescentes que tiveram suas vidas arrancadas do rumo pela brutalidade da violência de gênero. Agora, pela primeira vez na história do país, o Estado brasileiro reconhece esse luto e se compromete a ampará-los com uma pensão especial.
O governo federal regulamentou nesta segunda-feira uma medida histórica: órfãos e dependentes de mulheres assassinadas em casos de feminicídio terão direito a receber um salário mínimo mensal, pago pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Mais do que um benefício financeiro, a iniciativa carrega um profundo significado simbólico: o reconhecimento oficial de que o feminicídio não destrói apenas uma vida, mas toda uma rede de afetos — e que o Estado tem o dever de proteger quem sobrevive à tragédia.
Reparação em meio ao trauma
O valor — atualmente R$ 1.412 — será destinado a crianças e adolescentes menores de 18 anos, ou de forma vitalícia no caso de pessoas com deficiência intelectual ou permanente. O pedido deverá ser feito pelo representante legal do órfão, por meio dos canais do INSS, como o aplicativo ou o portal “Meu INSS”.
A concessão exigirá documentos que comprovem a filiação ou dependência econômica e a classificação do crime como feminicídio no processo judicial ou policial. “Este benefício não apaga a dor nem devolve o que foi perdido, mas representa um passo concreto na reconstrução da vida dessas crianças”, afirmou a ministra das Mulheres durante a cerimônia de assinatura.
Justiça que também é afeto
Por trás de cada número, há histórias que não aparecem nas estatísticas.
Há meninas que dormem abraçadas a roupas com cheiro de mãe.
Há meninos que perguntam, todos os dias, quando ela vai voltar.
Há adolescentes que viram adultos antes do tempo.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 1.400 mulheres foram assassinadas no Brasil em 2024 por serem mulheres. E, em muitos desses casos, elas deixaram filhos — órfãos não apenas de mãe, mas também de amparo. Até agora, o Estado virava o rosto diante deles.
Com a nova pensão, o Brasil dá um passo para mudar esse cenário. “Essas crianças não podem ser vítimas duplas: primeiro da violência que lhes tirou a mãe e depois do abandono institucional. Elas merecem proteção, educação e futuro”, defendeu a ministra dos Direitos Humanos.
Transformar dor em dignidade
A regulamentação da pensão especial não encerra a luta. Especialistas lembram que o benefício precisa vir acompanhado de políticas de prevenção, combate ao machismo estrutural e fortalecimento da rede de proteção às mulheres. Mas, mesmo com suas limitações, a medida carrega um valor simbólico profundo.
Ela diz, em outras palavras: “Nós vemos vocês. Nós reconhecemos a injustiça. E vamos lutar para que não sejam esquecidos.”
Para quem cresceu no epicentro de uma tragédia, cada gesto de cuidado é também um ato de resistência.
E, para o Brasil, cada política de reparação é um lembrete de que a justiça precisa ser mais do que punição — precisa ser memória, responsabilidade e, acima de tudo, humanidade.http://jornalfactual.com.br